domingo, 19 de junho de 2011

[conto-curto] o soldadinho de chumbo


O SOLDADINHO DE CHUMBO

O soldado sempre visitava aquela mesma boite em suas sessões de Repouso & Relaxamento . E sempre sozinho : mesmo estando o inferninho lotado, os colegas abriam pequenas clareias ao redor daquele veterano encouraçado, como se ele irradiasse calor de seus componentes ciborgues.

Sempre taciturno, sempre calado: o soldado remendado ocupava sempre a mesma mesa, mecanicamente fazia o mesmo pedido , mera formalidade, que seu corpo remendado já não tinha mais uso para álcool ou drogas de qualquer tipo : o veterano só conseguia ficar alto em combate – de fato, só conseguia sentir qualquer coisa em meio ao caos e a sanguinolência do campo de batalha.

Tudo desculpa, rito, antecipação para a apresentação particular de uma dançariana:sempre a mesma.

Ela não tinha nome,apenas número de série e apelido:Gina - que o soldado talvez nem conhecesse, pois não importava, nunca dizia palavra alguma,nem mesmo a ela. apenas olhava, olhava. era só o que podia fazer ali.

As strippers holográficas desfilavam pela passarela,giravam lânguidas etéreas ao redor dos postes, para deleite e exame criterioso do freguês;que, se não quisessem apenas olhar, poderiam apontar os modelos de sua preferência - ou fazer um remixe personalizado das partes que mais o atraiam em vários modelos, por uma taxa extra - e teria um exemplar sintético e sólido o esperando, quase imediatamente, num dos quartinhos à prova de som nos fundos do estabelecimento.

Mas o ciborgue veterano só podia olhar.

: fixamente, as mãos fechadas aos lados do drinque intocado na mesa, há poucos centímetros da figura luminosa voluptosa cambiante de Gina que brilhava pulsava revolvia-se em sua mesa, seu espetáculo particular. apenas um espetáculo.

Intocável.

Os olhos brilhantes na face morta do soldado; talvez ele pensasse na guerra, enquanto Gina rebolava ondulava emanava retrai-se emanava retrai-se emanava retrai-se quase rente a seu nariz.talvez ele pensasse na carnificina dos campos de batalha no vácuo; talvez ele pensasse na política cancerosa que fazia soldados como ele se matarem numa guerra sem fim para conter as rebeliões mineiras nas luas e anéis de asteróides daquele sistema joviano.

Talvez,talvez: já que ele certamente não poderia estar pensando em sexo. não, quando deixara suas bolas e o pinto nos campos de batalha. e tinha apenas componentes eletromecânicos no lugar.

Quem sabe, quem poderá saber - ninguém: ninguém poderia prever a fusão de seu micro-gerador nuclear, os colegas frequentadores daquela boite só podiam fugir em massa por portas e janelas, sem saber se os alarmes gritantes e os jatos de espuma anti-incêndio indicavam apenas fogo ou um ataque inimigo.

E, quando as coisas se aquietaram,não haviam evidências a serem vasculhadas, não havia como reconstituir muito bem os fatos: havia apenas a Gina, um fantasma congelado em estática chiante, numa mesa redonda, tombada, bem na borda de um buraco ainda chiante que se extendia até o coração do planetóide.

Nenhum comentário: