sábado, 16 de janeiro de 2010

[mini-conto]descartável


DESCARTÁVEL

Tira, dá um nó, joga na privada, dá descarga, suspira, acende um cigarro contemplando o redemoinho gorgolejante. Merda, não tá descendo. Aperta de novo e de novo, dá de ombros, abaixa a tampa, senta em cima, dá suas baforadas sem pressa.


A irritação se dissipa devagar, Clóvis lutando com a depré pós-coito. Neide continua na cama , contemplando as unhas e bocejando de vez em quando, acostumada com as manias do namorado.
Clóvis suspira mais uma vez. Não dá pra explicar , essa sensação de vazio, sabe como é que é? A cura pra sua melancolia de motel barato é o silêncio gotejante do banheiro, que transforma o vazio em filosofar.
Igual, assim. De onde vem isso tudo, pra onde vai essa porra toda? Clóvis frequentava mais o motel barato do que a igreja do bairro, mas ainda se sentia católico. Acreditava que sabia pra onde ia a porra toda (pra cima ou pra baixo), mesmo que evitase o desconforto dessas meditações.
Mas se pensar no pós-morte era desconfortável, imaginar o pré-vida era,era, era... terrível e irresistível ao mesmo tempo. Igual, assim. A gente tá aqui (e tá indo pra algum lugar), mas, de onde a gente veio? Por que tivemos que vir? E se a gente não viesse, hein? E se a gente não tivesse vindo.
Clóvis sacode a cabeça, abre o tampo, joga o toco de cigarro e, enquanto a brasa chia, ele pára num pensamento: eu vim, mas e quem não veio? eu poderia ter sido um monte de gente diferente e não sou. um monte de gente diferente poderia ter sido e não é. cadê elas agora?
Gelado, volta correndo pra cama, enrola-se nas cobertas e em Neide, que ronrona um pouco, mas logo já está roncando.Clóvis fica olhando arregalado pro teto. Toda essa gente que não foi e que poderia ter sido. Bilhões. Trilhões! O impossível, o inimaginável, o incalculável e a vertigem rodopiante dessa porra toda... não podem competir com o cansaço e o tédio e Clóvis cai em sono pesado.
Desperta sem ver, desperta pro que imagina ser um sonho. Deitado naquela mesma cama, a respiração de Neide, regular, em seu rospo, o corpo petrificado de tão frio, incapaz de se mover. A porta do banheiro aberta, a luz acesa - não. Peraí, Clóvis não tinha abaixado o tampo da privada?
A luz jorra pro teto como um holofote, esverdeada. Nessa semi-escuridão doentia, um exército de figurinhas do tamanho de um dedo médio flutua em formação rígida da borda da privada. Fantasmas semi-transparentes, gotejantes, bamboleantes, murchando e inflando como que fazendo força pra respirar fora de seu meio.
Seus números parecem não ter fim. A linha se estende do banheiro até sumir fora do campo de visão de Clóvis, próxima à cama, e então ressurge sobre os lençóis , sobre o peito de Clóvis. o ressonar ritmado de Neide se mescla ao inflar-murcha dos pequenos fantasmas, e eles expelem com essa falsa respiração um coro murmurado,inaudível até aquele momento final: "Paaaapaaaai..."


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