terça-feira, 19 de janeiro de 2010

[conto]tic-tac-tic-tac-tic

TIC-TAC-TIC-TAC-TIC

Já ouviu aquela lenda urbana? Aquela, sobre os ladrões de órgãos, sobre o carinha que conhece uma mina numa boite e que acorda com um rim a menos no dia seguinte? Não? Ótimo, então preste atenção.


O carinha acorda com um telefone celular estribilando a nona sinfonia. Não reconhece o quarto, a cabeça dói, o corpo inteiro dói. Pega o aparelho na mesinha de cabeceria: não é o seu. Na interface holográfica, só uma mensagem de texto: “Vá ao banheiro e dê uma olhada no espelho”.
Ele vai e olha, tonto, dolorido,seminu. Fica chocado com a própria aparência, abatido, desleixado. Cheira mal, até. E tem uma puta cicatriz no peito. Aquilo não estava ali no dia anterior,não,senhor.
Nova chamada, nova mensagem de texto. “A barba rala na sua cara já tem três dias. Você esteve drogado esse tempo todo. Extraímos seu coração e colocamos um artificial no lugar. Esse coração artificial funciona como um relógio que precisa receber corda a cada cinco minutos. Apartir deste exato momento , a cada cinco minutos, você receberá uma chamada neste aparelho. Quando atender, um sinal será transmitido através do canal aberto e o mecanismo receberá nova corda. Se não atender , se não obedecer nossas instruições e se procurar a polícia, o coração pára e você morre”- clic.
Ao pedir uma rediscagem com a voz rouca, o carinha recebeu apenas um sinal de “erro:comando desabilitado”.
A boite. A mina. A bebedeira. Que noite, que noite!... Enquanto se lavava, se barbeava, se vestia, descobria e devorava uma refeição fria deixada no frigobar, atendia as chamadas, esperava novas mensagens de texto - enquanto esperava a assombração da nona sinfonia: o carinha examinava o apartamento com os cantos dos olhos, ciente de estar sendo observado o tempo todo. Nada de pistas de seus...sequestradores? assassinos? Ladrões de coração: a única prova do crime, um perfume feminino suave, subliminar , que persistia mesmo após três dias.
Seguindo novas instruções, o carinha se dirigiu a um quiosque bancário específico . Requisitou cópias de todos os seus assets financeiros, impressas na hora, e fechou todas as suas contas. Colocou todos os papéis numa pasta deixada para esse fim no apartamento, fez uma ciranda pela cidade inteira, trocando de aerotaxis conforme ordenado, sempre atendendo às ligações, mas nunca agitado, graças ao ritmo constante do coração artificial, certamente. E, todo esse tempo, ainda sentia aquele perfume delicado, inebriante.
Por fim, “Jogue a pasta naquele bueiro aberto e pegue o primeiro aerotáxi que aparecer”. Não. O carinha parou, olhou o bueiro, olhou pros lados, pras pessoas, pros edifícios, pro céu. E começou a berrar: “Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!!!”, assustando a multidão de pedrestres que se abriu como o mar vermelho pra deixar sozinho no meio da calçada aquele maluco com a maleta.
Depois de alguns minutos: “Jogue a pasta no bueiro e pegue o próximo aerotáxi, senão morre”. “Não!”, o carinha berrou pro celular. “Não!”, berrou pro céu. “Não,não,não!Eu te amo, eu te amo, eu te amo!!!”
Tic,tac,tic,tac. Uma chamada, o sinal fantasma, mais cinco minutos de vida, e depois...? Mas antes do fim do prazo fatal, a nona sinfonia, e dessa vez é uma voz de mulher no telefone: “O quê...Aham. O quê você quer? ...hein?”
Ele quase sente o perfume através do sinal. “Eu quero convidá-la para um jantar, ora essa.”

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