quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

[conto]e todo dia será quarta-feira

E TODO DIA SERÁ QUARTA-FEIRA

As ratazanas lideravam as tropas, de seu modo próprio, desorganizado : infatigáveis, atentas a tudo, correndo às centenas pelo lodo, pela lama em que se transformava a terra encharcada de sangue, cheirando os corpos ainda quentes dos soldados caídos, zigue-zagueando através do tropel de patas da infantaria - acima de tudo, correndo das sombras imensas dos corpos de seus irmãos-de-armas que desabavam, fulminados, por todo lado.

As ratazanas eram os olhos, as narinas, os ouvidos e o cérebro daquele exército híbrido. Colhiam novas informações a todo instante, trocavam os dados entre si, reavaliavam a situação, emitiam novas ordens às tropas. Fundido à carne e aos ossos de suas cabeças,o acessório que as tornava um só super-computador vivo e ambulante: os elmos leves e resistentes com seu par típico de antenas em forma de disco, que giravam sem parar, uma em cada lado da cabeça, trocando sinais com seus pares.

É das ratazanas, pois, a visão do todo, o olhar privilegiado, ainda que nada imparcial, sobre aquele conflito :

As vacas permaneciam na retaguarda, pesadas demais para as arremetidas brutais, mas cumprindo bela e claramente seus papéis. Manejavam a artilharia portátil segundo as orientações das ratazanas e atendiam os feridos que chegavam do fronte, com os cirurgiões robôs de múltiplos braços retráteis implantados em suas úberes.

As vacas eram assistidas continuamente por cães veteranos de outros combates, mantidos vivos com próteses e drogas para ajudar no esforço de guerra. Eram criaturas gentis e dedicadas, como todos os de sua espécie,mas um tanto desorientadas pelos danos sofridos ; pareciam às vezes incapazes de realizar as tarefas mais simples – tudo isso, complicado pelas próteses humanas que eram obrigadas a usar, devido à falta de membros cibernéticos sob medida,nesses tempos de guerra. Esses pobres seres lutavam sempre, sempre, para servir a seu povo, para sobreviver a seus próprios traumas e para se equilibrar nas longas patas traseiras artificiais e para manejar aqueles braços mecânicos fora de proporção.

Às vezes, a única coisa que se podia fazer com os infelizes eram mandá-los logo para a linha de frente, para serem tirados de sua miséria, e lá iam, orgulhosos , ainda que cambaleantes, garotos-do-tambor e porta-bandeiras, sacudindo o estandarte com o símbolo e o slogan de seu exército: a luva branca de quatro dedos e os dizeres “DIREITOS IGUAIS PARA OS QUE NÃO TÊM POLEGARES”.

Os cães formavam, de fato, o grosso da infantaria, soldados natos, não importando suas raças. Excelentes guerreiros, indomáveis. Tinham apenas uma desvantagem severa, como armas de guerra: como seus colegas de outras espécies, os cães haviam sido emancipados em laboratório para cuidarem do próprio sustento, num mundo que abrançara ferozmente o conservacionismo como se fosse o último urso de pelúcia sobre a terra, mas que se recusava a cuidar das espécies animais que agora vicejam planeta afora, violentamente. Os neo-cães tinham sido treinados originalmente como mão de obra industrial e para atividades de alto-risco: assim, por razões de segurança, seu uniforme de quatro patas padrão, universal, era de um laranja vivo, atroz, tão útil como camuflagem em campo de batalha quanto um latido numa missão furtiva. E que passava despercebido como tal por um punhado de espécies com péssima capacidade de distinguir cores.

Mas quem mais sofria em combate eram os patos. Podiam ser tão versáteis quanto os cães e, por isso, estavam em todas posições, sempre na linha de frente, e por isso suas baixas eram enormes. Os esquivos filhotes , geralmente aos trios, eram sabotadores brilhantes, transformando em armadilhas engenhosas qualquer pedaço de lixo tecnológico ao alcance de seus bicos. As fêmeas agiam como enfermeiras , mais próximas ao calor da batalha do que as vacas, mas sua principal função era incentivar as tropas, empurrando os machos amarelões de volta ao fogo cruzado à base de porrada , se preciso.

Os jovens machos eram incontroláveis, no entanto. Emotivos, inconstantes. Parecia que estavam o tempo todo tentando se provar. De início calmos, relaxados, retraídos, mas não tanto, retraídos apenas até a primeira cacetada de uma fêmea severa. E então, quando envolvidos pelo estresse do combate: explodiam. Atiravam-se cegamente contras as linhas inimigas, grasnando como locuos, suicidas, ferozes: sempre atraindo a atenção espantada e o fogo dos inimigos, garantindo o avanço dos colegas com seus sacrifícios insanos. Eram ótimos chamarizes.

Pois eles acreditavam. Todos os seus irmãos-de-armas acreditavam nos ideias pelos quais lutavam e morriam, mas só os patos ainda acreditavam nas velhas histórias.  As histórias que os velhos patos contavam, aqueles veteranos rabugentos que zelavam ciumentamente dos depósitos de ração. Os jovens patos acreditavam nas histórias sobre o ©riador: aquele ser humano, o único ser decente a nascer daquela espécie monstruosa, que dera inteligência a todos os animais - quê , após contemplar sua obra e ver que era obra, recolhera-se para o interior de um bloco de gelo , para gozar de merecido repouso. Mas que voltaria um dia!, os velhos patos diziam, despertaria de seu sono frio para liderar seu Povo rumo a uma terra da alegria, onde a ração nunca seria escassa e as fêmeas seriam menos mandonas.

E onde nenhum ser vivo seria obrigador a pagar taxas de copyright pela própria existência.

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