sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

[conto]o monstro da semana:górgonas

O MONSTRO DA SEMANA(passada):
GÓRGONAS

“Tão belo que não pode ser encarado diretamente”, era o lema da indústria da moda no início do século XXII. “Belo”, ou qualquer outro adjetivo escolhido na ocasião pelos bio-estilistas em suas declarações pomposas à imprensa : não importava, a peça em exposição, a obra em desfile era sempre o corpo humano.


O corpo feminino, em particular. Ocidente e Oriente haviam feito as pazes na virada de século, reconhecendo-se como irmãos espirituais em temas como repressão a toda forma de dissenso, ainda mais em sua expressão cultural mais antiga, o puritanismo. E, se por um lado, apenas os cidadãos mais privilegiados tinham acesso aos tratamentos de melanina que protegeriam suas peles dos céus em que o ozônio minguava, por outro, as mulheres de todas as classes e nações tinham a proteção garantida de camadas sobre camadas de vestidos e véus que cobriam ciumentamente cada porção de seus corpos e ,em especial, os rostos.

Esses imperativos da moda eram cumpridos com rigor num mundo em que vigilantismo e linchamento voltaram a ser esportes populares – mas, sob as luzes das passarelas , o corpo feminino se mostrava agorava sempre nú, sem vergonha ou receio. Ainda que não fosse mais propriamente humano.

O corpo voltara a ser argila, barro fácil de ser modelado, como na origem mitológica do homem. Se "aprimoramentos estéticos" extremos eram inaceitáveis na vida civil, eram aplaudidos e cultuados nos desfiles de moda. Nesses palcos privilegiados, garotas de todas as classe e nações não mais exibiam belos trajes para todas as ocasiões, como há uma ou duas gerações , mas, sim, as novas maravilhas da bio-engenharia tornada arte: seus corpos nús exibiam penas,asas, escamas,cornos,antenas,cascos,garras,bicos... Eses acessórios animais (além dos vegetais,mais raros, mas não ausentes) tinha função apenas estética  e nem sempre se tratavam de meros implantes de tecidos, mas, muitas vezes,de fruto de engenharia celular , até da transformação de células e tecidos em material super-condutor , inteligente, que brilhava, vibrava, rugia, cantava, sumia, mudava de cor, para o encanto das platéias.

A sereia era um tema recorrente, cíclico, mas alguns exemplares extremos se tornaram clássicos que não podiam ser imitados. Como a garota de vidro: pele e músculos semi-transparentes, mutantes, conforme a irrigação dos tecidos , e ossos e órgãos internos fluorescentes, a intensidade e cor de seu brilho interno variando com os humores da menina. E essas variações de humor eram extremas, para melhor impressionar a audiência, e a pobre moça simplesmente morreu de exaustão emocional meses após sua primeira apresentação.

O processo de conversão era sempre doloroso, traumático, até, e geralmente irreversível. As garotas que passavam pelo procedimento gozavam de sua fama por pouco tempo, até serem esquecidas em nome da próxima novidade. Se tinham sorte e cérebro, conseguiam comprar uma aposentadoria precoce, mas mesmo asim passavam o resto de suas vidas tratando-se dos efeitos de suas transformações. As que não tinham sorte, morriam cedo como  a garota de vidro ou terminavam no mercado negro de pornografia e prostituição transumanos.

Após seu falecimento, correu o boato de que não havia um espelho sequer na mansão em que vivia enclausurada a garota de vidro.

Os desfiles não deixavam de afetar os próprios espectadores: já com os primeiros implantes super-condutores, artifícios como óculos de lentes polarizadas para todos na audiência , cortinas diáfanas ou armações com paredes de papel cercando as passarelas ou neblinas de gelo seco  cuidadosamente coreografadas eram empregados para proteger a clientela da presença estroboscópica das modelos. O risco, tanto quanto uma certa repulsa, eram grande parte do fascínio daquelas apresentações, é claro. Quanto mais extremas as modificações, quanto maior o estranhamento, ou o risco,mais irrestível era o espetáculo.

A menina com olhos de serpente foi uma divisora de águas nesse sentido, o fim ou início de uma era, certamente, para não desprezar clichês. Em sua primeira e única apresentação, o salão foi deixado às escuras, a única luz provindo de lâmpadas submersas no falso riachinho que ziguezagueava entre as mesas dos convivas. Todas as cadeiras no recinto eram pregadas no chão, com o recosto voltado para a passarela central. E todas as paredes eram espelhadas e permitiam uma visão plena e desimpedida, ainda que indireta, da passarela.

Os sussurros de espectativa nervosa cessaram com o som de chocalhos e, curiosamente, ninguém teve a coragem de se virar para procurar a origem do som. A menina com olhos de serpente não foi acompanhada de música em seu desfile, mas apenas do silêncio sufocado de sua platéia e do sacudir dos guizos delicados amarrados a seus tornozelos. Caminhava resoluta, lentamente, nua e sem cabelos: era toda ela apenas essa sombria esguia que prendia, petrificava todos os olhares que a seguiam no espelho, todos aqueles rostos fantasmagóricos sob a luz indireta, vitrificada.

Não houve aplausos depois que a menina de olhos de serpente finalmente completou seu circuito , desaparecendo no fundo do palco . Quando as luzes ambiente forma acesas, houve , isso sim, a confusão de mercado público de todos os homens no recinto brandindo seus talões de cheque e gritando ofertas pelo passe da menina. Quem comprou sua mão foi um xeique árabe, que conduziu a nova noiva, sob o maior sigilo e segurança , para uma de suas mansões, e que apareceu morto na manhã seguinte à noite de núpcias, ainda vestido, em seus aposentos- com todas as luzes acesas-, o rosto cor de cera manchado pelo sangue que escorria dos olhos arregalados, vítreos, as mãos agarrando um peito onde jazia esse coração disforme, inchado.

A menina com olhos de serpente sumiu e permanece anônima, invisível desde então. Por isso mesmo, ela assombra todos os homens até hoje: parece observá-los, silenciosa, atenta, paciente, indecifrável, sobre os véus que escondem os rostos de suas esposas, mães, filhas, irmãs, concubinas...

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