quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

[mini-conto]nem mesmo um beijo de boa-noite

NEM MESMO UM BEIJO DE BOA-NOITE

Jorge e Darlene esperavam o primeiro filho, mas o entusiasmo quase juvenil dos sonhos e preparativos logo se tornou estranhamento mútuo. Eram um casal jovem, Darlene era insegura e dada a episódios de depressão e Jorge não aceitava o repúdio da esposa a seus avanços constantes. Logo, pela primeira e última vez em sua carreira de marido apaixonado, procurou os serviços de uma prostituta.

Não se lembrava bem da mulher. É possível que estivesse incrivelmente bêbado na ocasião – tão chapado, que sequer se lembrava onde e como se embebedara. Lembrava-se do tesão louco, porém. Lembrava-se do fedor sufocante do beco onde treparam: lembrava-se do vermelho de brasa dos lábios da mulher e de seus dentes minúsculos,quase transparentes e pontiagudos.
Lembrava-se melhor, bem vivamente, aliás, da ressaca, da vergonha, da crise conjugal monstruosa que se seguira. Apesar da distância, Darlene não tinha como ignorar a marca horrenda de chupão no pescoço do marido, e Jorge não tinha como negar os fatos. Mal, mal pode salvar o relacionamento com um manancial de pedidos de desculpa e de promessas desesperadas. Darlene resistiu, esbravejou, chorou e cedeu, apavorada com a perspectiva do abandono e da solidão. Jorge conseguiu até arrancar um pouco de sexo da esposa naquela noite.
Mas, talvez devido ao fantasma da traição, a gravidez não correu bem. Jorge teve alguns problemas digestivos sérios na semana seguinte a do episódio vergonhoso, e logo se recuperou apenas para descobrir Darlene sofrendo de complicações bizarras que ninguém sabia explicar, uma anemia galopante que minava seu ânimo até mesmo para a briga, ainda que a moléstia misteriosa não parecesse afetar o nenê.
E houve enfim a crise, o nascimento prematuro. Os gritos lancinantes de dor da esposa enquanto Jorge a levava para o hospital como que num estado de transe. A hemorragia.
Os gritos que continuaram na sala de cirurgia; que foram suprimidos por um coro horrorizado que só podia vir da própria equipe operatória: tão estarrecida quanto Jorge, quando invadiu aquela sala de matadouro, com a esposa inerte na mesa, aberta, revirada, e nas mãos de um dos médicos cobertos de sangue, uma criaturinha que o infeliz lutava para manter afastada do próprio rosto, algo que deveria ser um bebê recém-nascido, mas que tinha uma boca gigantesca que se abria e se fechava constantemente exigindo mais mais mais mais!, suas bordas serrilhadas de boca de piranha.
... e Jorge acorda aos berros do sonho cruel. Sem fôlego, e mesmo assim berra um pouco mais na escuridão absoluta e abafada e os gritos se transformam em riso histérico, quando começa a reassumir o controle. Tremendo, quase chorando: o horror sumia, ainda que aquele abafamento parecesse piorar aquela sede louca que o atormentava recentemente .
Apesar da crise conjugal, Darlene estava bem, o nascimento do bebê ainda distante. O que salvara o casamento, na verdade, foram as crises anêmicas que Jorge e não a esposa estivera sofrendo nas última semanas, desde aquela escapulida noturna. A fraqueza cada vez pior e aquela sede insuportável que sempre voltava na calada da noite. E deveria estar pior do que se sentia, pois dificuldade em se lembrar dos eventos do dia, de fato, não conseguia se lembrar do que fizera e do que deixara de fazer naquela semana.
Mas Darlene e o bebê estavam bem, e só isso importava. Jorge limpa o suor frio da testa... não, a testa estava seca, apesar dos arrepios...deveria ser a fraqueza. O corpo frio, mas o ambiente escuro de breu abafado, e a sede estúpida: Jorge decide se levantar para espantar o pesadelo de vez e ir à cozinha beber um copo d’água bem gelada, e então bate a testa com força na tampa hermeticamente selada do caixão.

Um comentário:

Gláucia Jorge disse...

Gostei! Esperava um final inusitado e vc superou minhas expectativas. Acho que ficaria bacana tbm se ele se sentisse culpado por não sentir culpa... (risos) Li como se fosse novela e deu vontade de conversar com amigas comendo pipoca e discutindo se Jorge merecia ou não o fim que teve. Eu acho que não (mais risos)!
Beijão!
Caçadora de Estrelas