terça-feira, 23 de novembro de 2010

[conto] jogo da verdade

JOGO DA VERDADE

Sentados à mesa  , redonda e estreita, no meio da cozinha que já não era tão grande afinal. Os dois se encarando:ele, fumando o cigarro devagar, um dos braços jogado sobre o encosto da cadeira, a mão livre indo e vindo do cinzeiro . Ela, bebericando a cerveja diretamente da lata, sentada sobre as pernas cruzadas.

Tiraram a sorte no a-de-da-NHÁ!-ela ganha, solta o fôlego com força, aliviada. Ele grunhe, pega o revólver no meio da mesa,abre o tambor, coloca a bala solitária, fecha, gira o tambor, encosta o cano na cabeça. Inspira fundo.
"Sabe aquela coleção de revista de mulher pelada que eu tinha? Você disse que se eu a amasse, jogava tudo aquilo fora. Disse que joguei mas não joguei nada. Está tudo guardado lá na casa da minha mãe".

Ante o olhar intrigado dela:

"Pô, só tinha raridade ali."

Puxa o gatilho-clic.

Tremendo um pouco, ele deposita a arma len-ta-men-te sobre a mesa. Pegou o cigarro soltando ainda fumegante no cinzeiro, dá uma tragada bem funda.

Ela também não se apressa em assumir a deixa. Enfim, toma a arma como se fosse um bicho engraçado mas inofensivo, examina, pesa como uma fruta na feira.

"Bom... Quando a gente jogava buraco com seus tios? Eu, sempre em dupla com a tia Clara? Nós duas roubávamos em toda partida."

Só então ela olha para ele, sorri sem jeito - ele gesticulando mudo com mão e ombros num "mas e daí?"- e então - clic.

Ela troca a arma pela latinha de cerveja, rapidamente.

Ele acende o cigarro seguinte na ponta do que acabava. Pega a arma , vai girar o tambor,casual, ela faz um  "na-na-nã",lembrando-o das regras. Ele para,dá de ombros, ergue o revólver até a cabeça, ficou olhando pros lados, pro teto, procurando o que dizer.

"Tá bom." Ajeita-se melhor na cadeira, o braço erguido , congelado, naquela posição. "Tá bom".

"Aquela vez em que você deu falta da grana no armário e a gente acusou a faxineira? Fui eu." Ela para com a latinha quase tocando os lábios. "Tinha pedido empréstimo ao Zé Porcão  , tinha que pagar logo... também não tinha te contado isso...peraí, são duas duma vez, posso pular a próxima...?", e ela apenas balança a cabeça em negativa.

Ele acena em concordância, suspira e clic.

Ela estica a mão através da mesa. Ele lhe entrega a arma, e seus olhos estão presos o tempo todo.

"Você me perguntou isso uma vez e eu menti. Já engravidei uma vez e abortei. ...foi bem antes de te conhecer", como isso fosse curar o desencanto na cara dele.

Clic.

Sem esperar, ela lhe oferece a arma.

"É. Eu já te chifrei. Duas vezes.",e ela aguarda o resto de braços cruzados, e ele não tem coragem de continuar, e apenas puxa o gatilho em vergonha - clic. Enquanto ele praticamente empurra a arma em sua direção, por cima da mesa , ela mantem a expressão dura - e os braços cruzados - . como a dizer que ele deveria apertar o gatiho duas vezes seguidas, uma por cada chifrada.

Ela termina a cerveja num trago curto, barulhento. Vira-se, faz pontaria na cesta de lixo num canto, atira,- erra ; solta uma praga baixinho. Volta-se para a mesa, suspira pesado, pega a arma. Olha bem dentro dos olhos do marido:

"Eu nunca te amei".

Aproveitando o aturdimento dele, ela lhe dá um tiro bem no meio da testa.

Era mentira.

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