***
Vlad despertou sem vontade para a luz mortiça do dia, o céu cinzento matutino encoberto pela cara barbuda e seca do Doutor.
"Dói? Bom."
Vlad poderia jurar que o bafo do sujeito cheirava a ozônio.
O Doutor se afastou de imediato, como que para cuidar de coisas mais importantes. George tomou seu lugar na boca tenda onde Vlad jazia, curtindo suas dores e remendos. O jorro de adrenalina da fuga deveria ter acabado há tempos, mas o ex-soldado continuava branco.
"Juro por Deus, companheiro. Quero viver até os cem anos só para poder contar a meus netos que um dia o avô deles apostou corrida com uma avalanche e venceu."
Vlad não se lembrava de avalanche alguma. Havia os ecos da explosão, apenas... uma correria quase as cegas até o acampamento...
Lembrava-se de ter notado um carniçal fujão, lembrava-se de ter desatrelado o snowmobile do pequeno vagão de carga para partir em sua perseguição (não se lembrava de Pequeno Hiawatta, Gerônimo, a cachorrada). Lembrava-se daquele ódio sólido, metálico de tão frio, ódio de si mesmo, daquele karma puto que cultivava, agora colhia, agora desafiava. Lembrava-se daquela vontade de morrer.
É , alguém sempre tinha que bancar o herói e Vlad preferia que tivesse sido ele e não Teco a cumprir aquele papel.
Podia ouvir Gerônimo mais adiante, sempre enfiado em seus afazares, aparentando uma agitação que de fato não tinha - mesmo a gritaria com os cães (e Pequeno Hiawatta, respondendo com resmungos às ordens do pai) era apenas parte da rotina quase sagrada.
E a barulheira matinal do acampamento foi estancada duma vez: do alto de uma colina apareceu um som desafinado de cordas e voz, desceu sem pressa, El Cabongo entretido com a viola que fora catar em sabe-se lá que abismo infernal.
O Doutor veio saltntante com a maleta de primeiros socorros numa das mãos como se fosse uma cesta de piquenique... voltou cabisbaixo para o que quer que vivia fazendo ao perceber que o outro não precisava de cuidados médicos.
George parecia indeciso entre dar um abraço ou um tiro no recém-chegado.
El Cabongo veio sentar-se ao lado de Vlad na tenda, o resto do acampamento já se recuperando de sua aparição súbita. Coçava-se sobre a máscara, tique de nervosismo e embaraço. Abriu a boca para dizer algo e Vlad o interrompeu:
"Não se preocupe com a porra da recompensa. Há muitos mais desses fedaputas por aí pra gente pegar.Sossega."
O outro concordou com um aceno de cabeça; depois , passado um minuto:
"Pra onde agora, chefe?"
Vladislau, brasileiro por destino, cigano por vocação (senão o contrário), inspirou com força, sentido doerem todos os seus remendos, respondeu lento:
"Pro norte, compadre. Pro norte."
***
FAMOSAS PALAVRAS FINAIS (Conclusão)
Do modo como é proposto aqui, R.I.P. é um projeto inviável.
Cometi um erro fundamental na elaboração de um projeto de game: parti da "história", do mundo de jogo, e não da tecnologia disponível para aprodução de dito jogo.
A intenção originária era criar um rpg eletrônico independente e original, algo perfeitamente aceitável no mercado atual (se não o brasileiro, o internacional, ao menos - daí a importância da adaptação do material para línguas estrangeiras...não exclusivamente a inglesa). Porém, o único "asset" disponível de início era a história/mundo de jogo; o financiamento só podeira vir da venda da p.i. R.I.P.(isso, com muita sorte)para alguma terceira parte, alguma empresa distribuidora , provavelmente. O que equivaleria, basicamente, a dar a extrema-unção à idéia de produção independente.
E é claro que ser "indie" não é a única opção honesta para quem quer ser um desenvolvedor de games, de forma alguma. Mas a questão persiste, pra mim, ao menos: por que não ser indie?
A grande lição desse experimento mental,então: começar o processo de desenvolvimento apartir da tecnologia e, mais essencial, do "know-how" disponíveis - *depois*, criar a história/mundo de jogo, se for o caso, mas sempre à medida desses recursos originais.
E, francamente? Quem é ambicioso - menos finaceira do que criativamente -deveria tentar a trilha indie, se não de forma exclusiva, ao menos, paralelamente a uma carreira "convencional"no ramo gamer.
Por fim, há outra falha dolorosa no projeto R.I.P.: a história/mundo de jogo oscila entre um tom alegórico pouco sutil e um tom panfletário hidrófobo.
Isso não é nada legal.
O impulso original para o desenvolvimento da R.I.P. é *político*. Eu estava prestes a escrever "foi", mas, não; fico dolorosamente surpreso ao perceber que o impulso persiste, ainda é válido (única dica pra essa ruminação vaga, ok?: o projeto começou em fins de 2008... não preciso dizer mais nada, pô).
Porém, não há nada mais sacal e datado que discurso moralizante, não importa sua orientação política.
Vlad despertou sem vontade para a luz mortiça do dia, o céu cinzento matutino encoberto pela cara barbuda e seca do Doutor.
"Dói? Bom."
Vlad poderia jurar que o bafo do sujeito cheirava a ozônio.
O Doutor se afastou de imediato, como que para cuidar de coisas mais importantes. George tomou seu lugar na boca tenda onde Vlad jazia, curtindo suas dores e remendos. O jorro de adrenalina da fuga deveria ter acabado há tempos, mas o ex-soldado continuava branco.
"Juro por Deus, companheiro. Quero viver até os cem anos só para poder contar a meus netos que um dia o avô deles apostou corrida com uma avalanche e venceu."
Vlad não se lembrava de avalanche alguma. Havia os ecos da explosão, apenas... uma correria quase as cegas até o acampamento...
Lembrava-se de ter notado um carniçal fujão, lembrava-se de ter desatrelado o snowmobile do pequeno vagão de carga para partir em sua perseguição (não se lembrava de Pequeno Hiawatta, Gerônimo, a cachorrada). Lembrava-se daquele ódio sólido, metálico de tão frio, ódio de si mesmo, daquele karma puto que cultivava, agora colhia, agora desafiava. Lembrava-se daquela vontade de morrer.
É , alguém sempre tinha que bancar o herói e Vlad preferia que tivesse sido ele e não Teco a cumprir aquele papel.
Podia ouvir Gerônimo mais adiante, sempre enfiado em seus afazares, aparentando uma agitação que de fato não tinha - mesmo a gritaria com os cães (e Pequeno Hiawatta, respondendo com resmungos às ordens do pai) era apenas parte da rotina quase sagrada.
E a barulheira matinal do acampamento foi estancada duma vez: do alto de uma colina apareceu um som desafinado de cordas e voz, desceu sem pressa, El Cabongo entretido com a viola que fora catar em sabe-se lá que abismo infernal.
O Doutor veio saltntante com a maleta de primeiros socorros numa das mãos como se fosse uma cesta de piquenique... voltou cabisbaixo para o que quer que vivia fazendo ao perceber que o outro não precisava de cuidados médicos.
George parecia indeciso entre dar um abraço ou um tiro no recém-chegado.
El Cabongo veio sentar-se ao lado de Vlad na tenda, o resto do acampamento já se recuperando de sua aparição súbita. Coçava-se sobre a máscara, tique de nervosismo e embaraço. Abriu a boca para dizer algo e Vlad o interrompeu:
"Não se preocupe com a porra da recompensa. Há muitos mais desses fedaputas por aí pra gente pegar.Sossega."
O outro concordou com um aceno de cabeça; depois , passado um minuto:
"Pra onde agora, chefe?"
Vladislau, brasileiro por destino, cigano por vocação (senão o contrário), inspirou com força, sentido doerem todos os seus remendos, respondeu lento:
"Pro norte, compadre. Pro norte."
***
FAMOSAS PALAVRAS FINAIS (Conclusão)
Do modo como é proposto aqui, R.I.P. é um projeto inviável.
Cometi um erro fundamental na elaboração de um projeto de game: parti da "história", do mundo de jogo, e não da tecnologia disponível para aprodução de dito jogo.
A intenção originária era criar um rpg eletrônico independente e original, algo perfeitamente aceitável no mercado atual (se não o brasileiro, o internacional, ao menos - daí a importância da adaptação do material para línguas estrangeiras...não exclusivamente a inglesa). Porém, o único "asset" disponível de início era a história/mundo de jogo; o financiamento só podeira vir da venda da p.i. R.I.P.(isso, com muita sorte)para alguma terceira parte, alguma empresa distribuidora , provavelmente. O que equivaleria, basicamente, a dar a extrema-unção à idéia de produção independente.
E é claro que ser "indie" não é a única opção honesta para quem quer ser um desenvolvedor de games, de forma alguma. Mas a questão persiste, pra mim, ao menos: por que não ser indie?
A grande lição desse experimento mental,então: começar o processo de desenvolvimento apartir da tecnologia e, mais essencial, do "know-how" disponíveis - *depois*, criar a história/mundo de jogo, se for o caso, mas sempre à medida desses recursos originais.
E, francamente? Quem é ambicioso - menos finaceira do que criativamente -deveria tentar a trilha indie, se não de forma exclusiva, ao menos, paralelamente a uma carreira "convencional"no ramo gamer.
Por fim, há outra falha dolorosa no projeto R.I.P.: a história/mundo de jogo oscila entre um tom alegórico pouco sutil e um tom panfletário hidrófobo.
Isso não é nada legal.
O impulso original para o desenvolvimento da R.I.P. é *político*. Eu estava prestes a escrever "foi", mas, não; fico dolorosamente surpreso ao perceber que o impulso persiste, ainda é válido (única dica pra essa ruminação vaga, ok?: o projeto começou em fins de 2008... não preciso dizer mais nada, pô).
Porém, não há nada mais sacal e datado que discurso moralizante, não importa sua orientação política.
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...o que não quer dizer que alguma indignação moral/politicizada (i.e., com um mínimo de reflexão e auto-crítica) não seja SEMPRE oportuna.
Mesmo enfiada em produtos de entretenimento.
Aliás, especialmente oportuna, nesse contexto . Sempre.
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