sábado, 6 de novembro de 2010

[conto] além do arco-íris

ALÉM DO ARCO-ÍRIS

[escrito para o concurso de novembro/2010 da comunidade orkut CONTOS FANTÁSTICOS]

Cada um tem a medida da própria loucura. Como remédios ...drogas...que têm efeitos diferentes de acordo com a dose ministrada e de acordo com o paciente medicado. cada um sabe a loucura que melhor lhe serve; cada um sabe a medida de sua própria camisa de força.
Isso Suzana meditava, sem saber articular direito, durante seu breve período de internamento no "Albergue". São Francisco,1968: no ano seguinte ao do verão do amor, a área da baía fora inteira para o inferno.Suzana estava lá para assistir o espetáculo do lugar mais privilegiado,  não um camarote, mas o centro do palco.
Não queria estar. Depois de um ano de quase mendicância, Suzana já estava de saco cheio da  vida livre em São Francisco; quase a ponto de voltar pra casa, cogitando seriamente o retorno humilhante ao lar . Apostava que a primeira coisa que o pai diria, com a aprovação silenciosa e ressentida da mãe (olhos baixos, limpando as mãos num avental): "já para o seu quarto, mocinha,e hoje você vai dormir sem janta".  não custava muito a se livrar da estúpida idéia rapidamente, assim.
Afinal, num país daquele tamanho, sempre haveria aonde ir  que não apenas São Francisco,Califórnia , A Terra do Nunca, ou Cuzópolis,Arizona, A Terra da Bíblia Numa Bão e Um Chicote na Outra. Sempre haveria alguma fronteira a ser explorada ; sempre haveria algum lugar para onde fugir.
Suzana poderia ter fugido para Los Angeles em busca de fama...e provavelmente acabaria vendendo-se na rua. Preferiu fugir para Cisco, em busca de liberdade... e, bem, quase acabara na rua, se vendendo.
São Franscisco fora um vício de que ela já estava se curando. Durante sua estadia na cidade, geralmente lhe ofereciam drogas pra fazê-la baixar a guarda e a calcinha... infelizmente, isso funcionava às vezes, e mais de um cafetão ou líder de seita filho da puta já tentara viciá-la em alguma coisa pesada, tudo em nome do amor livre. Para muita gente ali, abrir a cabeça dos outros equivalia a abrir-lhes as pernas.
Mas Suzana adorava a música e a arte que eram como maná na cidade ...e foi, é claro, surpreendida e seduzida pela descontração do ambiente... Até que a etiqueta do paz-e-amor se tornara tão opressiva quanto qualquer puritanismo: num extremo, havia os clubes de motoqueiros baderneiros e estupradores. não era mais questão de dizer "sim" a tudo o que era novo: você não tinha mais direito de dizer "não".
Quando estava finalmente pronta para abandonar São Francisco, não deixaram que fosse embora.
Nos últimos meses, o humor da cidade oscilava sensivelmente, fluido, amorfo ...irirtadiço - volátil; não foi surpresa alguma quando a área da baía incendiu-se e explodiu, mentalmente; quando se tornou oficial que São Francisco enlouquecera de vez, aleluia irmãos e irmãs!
O cheiro de rosas estava para todo lado,ou,ao menos, Suzana o sentia por todo lado, primeiro, sútil, misturado aos fedores usuais da cidade; depois, obssessivo,poluente. Adorava aquele perfume...e era terrível imaginar que poderia se enjoar dele...da mesma forma que um dia fora impensável que seu caso de amor-a-primeira-vista com São Francisco não fosse durar para sempre.
Os "zumbis do amor" começaram a proliferar mais que, bem, flores da primavera. Havia uma nova moda, absurda mesmo naquele mundo que pretendia ser contra as normas: orgias públicas, maratonas sexuais que brotavam sem aviso em pontos improváveis, oportunos. de moitas de parques públicos aos coretos das praças, aos pontos de ônibus, lanchonetes, lojas, repartições públicas, qualquer esquina.
Essas manifestações de suposta rebeldia eram reprimdias com dureza, é claro... mas mesmo aqueles que protestavam contra as prisões em massa tinham dificuldade em encarar aquela expressão vazia... ausente... no rosto corado de cada um dos "manifestantes".
Então, certa noite, Suzana acordara no muquifo em que estava enfiada para uma orquestra infindável de sirenes de carros de ambulâncias, de carros de polícia e de bombeiros. o amor zumbi se transforma em violência casual como que pelo apertar de um botão, ou transbordar de intolerância, ou tolerância finita. na manhã seguinte, Suzana saíra a rua para descobrir que alguém roubara sua antes adorada Cisco e colocara um zoológico no lugar.
Nas ruas:um bando de donas de casa em espumantes perseguiam, de quatro e latindo, um carteiro esfarrapado e apavorado.
num ateliê: um artista de vanguarda atendia uma longa de fila de autógrafos; e gravava seu nome com uma navala na pele de seus admiradores.
numa comuna: hippies e policiais gozavam de um vai-e-vém sado-masoquista infindável ao som gravado de cítaras e bandas militares.
A névoa que encobria toda a área da baía não era púrpura, mas continha todas as cores do arco-íris e além. Suzana o via bem, mas não podia dizê-lo a ninguém, é claro.
certa noite, vira ,da janela de um edifício depredado em que se entocara ( a vida na cidade, saindo do armário, afinal, como a fuga sem fim que realmetne era), um sujeito pelado, enrolado na bandeira, que deu a si mesmo um banho de gasolina, sentou-se no meio de um cruzamento, acendeu um baseado , ardeu calmamente até o amanhecer. e, além de Suzana, que não conseguira arranjar coragem para tentar socorrê-lo,  ninguém deu a mínima.
Havia guerra nas ruas, deus do céu!, bandos de gente armada até as gengivas que trocavam tiros , lançavam granadas ou bombas caseiras através das avenidas; e esses grupos formavam-se e desapareciam em pleno ar, improvisados, happenings guerrilheiros:ninguém sabia por que lado estava lutando e, muitas vezes, acabava engalfiado com os próprios irmãos de armas, depois de dizimados os bandos opositores.
Suzana sempre permanecia sozinha, pulando de toca em toca, evitando os incêndios que proliferavam e os tumultos instantâneos. Estava tão louquinha quanto todo mundo, é claro; apenas custara um pouco a percebê-lo, ou a admití-lo.Cultivava uma forma própria de fantasia paranóica , com seus extremos usuais de epifania e horror: sob o perfume quase sufocante de rosas, mimava o conceito difuso da "chuva ácida", uma versão lisérgica da garoa da baía. Essa chuvinha que corroía São Francisco há anos, décadas, quem sabe séculos?; que dissolvia o mundo em cores de arco-íris que então corriam em enxurradas sarjetas afora, bueiros adentro...sumindo na escuridão.
A chuva que corroía e dissolvia as ilusões, a fachada do mundo, e que revelava...?
Era nesse ponto que Suzana sempre lutava contra a fantasia hipnótica: porque não havia nada por baixo da falsidade do mundo,não é mesmo? Aquilo não era o erguer-se dos véus de maya: era como um museu de cera inteiro ardendo e derretendo ao final de alguma filme de horror classe b.
Estremecia de náusea ao se pegar pensando essas coisas; o asco, a vergonha, o pavor: aquilo não era como suas experiências anteriores com drogas , mesmo as piores. aquilo era pior, mais fundo, violento, cruel até - era como ser violentada; despida até a alma,sem poder reagir, e abusada.
Assim, foi tanto por medo da turba quanto por horror ao que acontecia consigo mesma que Suzana criou coragem e procurou ajuda. Chegara a um dos pontos de resgate indicados no rádio, no alto dos morros, exausta, tremendo de medo e fome as pessoas entravam em fila nos helicópteros enormes...como..cordeirinhos?...gado indo para o...os soldados: pareciam realmente robôs alienígenas com suas máscaras contra gases. aproximou-se tímida de um deles, as mãos erguidas em súplica:"Me ajude, por favor... acho... acho que estou doente",e levou uma coronhada no estômago em respota.
Como todos os outros cordeirinhos, Suzana fora conduzida, "para sua própria proteção", ao "Albergue da Juventude", que era como os guardas chamavam o lugar; provavelmente porque todos os "hóspedes" pareciam ter menos de trinta anos. A maioria, mulheres,negros,orientais,judeus,homossexuais; os poucos que não pareciam se enquadrar nessas "minorias" eram radicais de esquerda.
Oficialmente, o "Albergue" era um Q.G., centro de monitoramento e pesquisa contra o mal indefinido que havia tomado a área da baía. Era também um centro de quarentena pelo qual passavam todos os civis aparentemente sãos antes de serem transferidos para campos de refugiados longe da "zona quente". Alguns civis ficavam mais tempo que os outros...bem mais. Como que tornados hóspedes residentes do Albergue. Que fora instalado em ponto estratégico da cidade:
Em Alcatraz, é claro.
Havia uma pequena disputa entre os internos sobre qual a teoria mais ridícula, a de uma invasão alienígena ou a de  uma invasão soviética. E havia, é claro, uma história corrente e mais aceita : a de que o governo, a CIA, os militares ou todo mundo junto havia jogado alguma merda mucho loca no sistema de abastecimento de água da cidade, enchendo a população local com alguma merda lisérgica barra pesada por meses a fio. Mesmo entre toda  aqueles internos experimentados, não dava para saber se aquilo era LSD ou alguma merda experimental ...não com as dosagens elevadas que se especulava. Dava para saber apenas que, daquela viagem,não havia volta.
O consenso era o de aquela era uma "super-arma" em teste, a ser usada contra os vietcongues ou quem quer fosse. Porra, talvez aquela demonstração bastasse para todos os comunas do mundo, essa puta prova de conceito. Se nós aprontamos isso com a nossa própria gente, imaginem só o que faríamos com vocês, seus vermelhos chupadores de pica.
Mas não eram os vermelhos que andavam por Alcatraz com aquela expressão de quem engoliu porra e não gostou. Outro ligeiro consenso entre os "hóspedes" do Albergue era o de que a merda saíra ao controle. Por trás do frio, profissional fascismo de sanatório, havia um medo palpável nos olhos e no cheiro de suor dos médicos e militares que corriam por todo o "centro de pesquisa".
E Suzana também tinha medo; todos tinham, mas havia uma atitude combativa entre os detentos...atitude que Suzana não compartilhava. Já se sentia derrotada: sua briga era consigo mesma, não deixar que os outros vissem que ela era bem, mais uma. Como os outros  lá fora. Como todos os loucos.
A estadia no "Albergue" era tolerável... mas havia a "ala vip". Ali iriam parar todos os que fossem pegos na triagem, os que mostravam os sinais da névoa púrpura... da chuva ácida ... da...da... Suzana não podia baixar a guarda.
E baixou, é claro, durante uma das recorrentes, recicladas sessões de conversa mole no refeitório . Comentava-se em sua mesa que a guarda nacional apenas guardava as fronteiras da imensa zona de quarentena; com a guerra no Vietnam e tudo mais não havia como retomar a cidade. Havia, quanto muito, apenas patrulhas aéreas ocasionais, de helicóptero, feitas pelo que sobrara corpo de polícia local. Foi quando Suzana perdeu o controle. Fez uma associação de idéias idiota , tão besta , tão besta que não conseguiu se segurar.:o riso queria sair como um incômodo soluço, ela lutou e mesmo assim as risadinhas brotaram como um acesso de tosse ou engasgamento,e logo se tornaram gargalhadas histéricas, e Suzana estava rolando pelo chão abraçando o estômago, ah, a dor, a dor que as gargalhadas lhe traziam , e o alívio, via entre lágrimas os companheiros se afastando como se ela fosse uma leprosa epilética. Logo chegaram os guardas e enfermeiros,tiveram que tirá-la dali arrastada, ainda cacarejante , espancaram-na sem sucesso, no fim, tiveram que sedá-la.
Policiais em helicópteros: porcos voadores. Ah , aquela fora a última dose.
Seu tratamento vip começaria com os rituais mais básicos. O eletrochoque,então. Amarrada numa mesa, aquela gente a sua volta como abutres sobre a vítima que agoniza, aquela sala apertada, onde o ar não circulava, sufocando, sufocando... respirando com força:Suzana queria desmaiar de pavor logo duma vez e não conseguia, conseguia apenas inalar com mais força o ar viciado e sentir cada vez mais nítida no ambiente aquela suave essência, como que impregnando tudo, tornada o próprio ar, carregado, úmido ...
Denso como o nevoeiro na baía, o nevoeiro tão denso que tem cheiro o próprio ; o cheiro de nevoeiro, outro, agora. primaveril.
O ar denso, úmido: como que com o suor que brilhava nas testas dos homens e mulheres a sua volta, apavorados atrás de suas máscaras cirúrgicas. Aqueles olhos arregalados - aquelas de pupilas dilatadas.
Arreganhadas: além delas, a escuridão, onde Suzana conseguia enxergar tudo, agora.
E seu próprio medo sumiu ... evaporou-se.
Suzana sorriu ; quando uma enfermeira estava prestes a lhe enfiar um pedaço de borracha na boca, ela lhe sussurrou, apenas:
"Eu te amo."
A enfermeira caiu de joelhos e Suzana ouviu-a chorando abaixo de seu ângulo de visão. Virou-se como pode para cada um na sala, repetiu a doce fórmula. Mais choros, riso, urros de dor encheram o recinto; imobilizada, Suzana não pode acompanhar direito a confusão armada a seu redor, aquelas sombras furiosas rodando pelo teto, o som imenso do desvairio. A sua frente, além de seus pés: um médico batendo a cabeça na parede, até trincar a pintura anciã, deixando no lugar uma mancha de sangue, e desabar no chão.
Suzana esperou que a confusão aumentasse e então silenciasse de vez; logo, um médico sujo de vermelho debruçava-se sobre ela, desatando suas amarras, tentando dizer-lhe algo, incompreensível em seus soluços.
Quando estava finalmente livre, Suzana abraçou-o longamente; ao soltá-lo, ele se afastou lentamente, balançando a cabeça em concordância, tirou do bolso um bisturi e abriu a própria garganta.
no corredor, esperava-na uma comtiva de soldados apontando-lhe seus fuzis. apavorados, cada uma daquelas pobres crianças. Sempre sorrindo: Suzana quase cantou uma nova expressão que lhe ocorrera; repetiu-a a cada esquina como uma abre-te-sesamo para todas as portas e barreiras.
chegou enfim a uma sala de controle, ligou o alto-falante, anunciou para toda a Alcatraz:
"Vocês estão livres. Todos vocês estão livres agora."
Depois, intocada pelo caos sangrento que rugia a sua volta, caminhou tranquila até a saida mais próxima. Abriu a porta, saiu, foi embora sem olhar para trás.

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