quarta-feira, 27 de outubro de 2010

[conto] o ladrão de beagá

O LADRÃO DE BEAGÁ

Há histórias que não têm como acabar bem. Não dá.
Nem toda história serve para todo mundo. Nem toda história acaba bem pra todo mundo.
Muitas vezes, a gente pode apenas protelar o fim da história, emendá-la noite após noite, mil noites, mil e uma se preciso. Sempre em busca de uma solução satisfatória .
Afinal, quem teria coragem de contar histórias de fadas para um menino de rua? "E todos viveram felizes para sempre"?...
 
***
Servicinho de profiça: tudo acertado, ajeitadinho. Mansão no mangabeiras e o vigia estava no rolo; daria o sinal de que a barra estava limpa, os patrões em viagem pelas zoropa ou sabe-se lá onde, os cães de guarda bem trancados no canil.
Latindo feito diabos, os animais, enquanto Manuel e Salomão pulavam o muro, caixotes empilhados como escada, tapete de borracha sobre o arame eletrificado - o primeiro serviço profissional dos dois moleques, coisa do Abílio, O Maneta, que rodava a vizinhança na espera, daria alarme com buzinada em caso de treta, tirava os dois da vizinhança quando trouxessem a encomenda.
Tirassem da cada tudo o que quisessem, que pudessem carregar, mas que trouxessem o vaso na foto,e inteirinho, senão, nada feito. Os dois é que não iriam se queimar se desse merda; Manoel tenso, nervosinho, querendo fazer o serviço direito.
O Salomão...não. O Salomão só queria pular aquele muro; só queria ver o que tinha lá dentro.
Folgado esse Salomão, diziam. Moleque que não segue as regras não vive nem o bastante pra ir em  em cana, resmungavam.
No quintal, o Manoel - nervoso - cochichando com o vigia, sob o latido feroz da cachorrada. Salomão só olhava em volta: a piscina - vazia,imensa - o gramado, quadra de peteca, cobertura pras mesas de sinuca... e a churrasqueira era tão grande que Salomão poderia viver feliz ali dentro.
Psst,vamo nessa. Deixando o vigia de vigia, ainda mais nervoso que o Manoel, mandando a cachorrada calar a boca, sem sucesso.
Lá dentro - no escuro, sem acender luz nenhuma, sem dar mais bandeira - ...via-se pouco, quase nada, mas o cheirinho... Cheiro de couro. Cheiro de tempero, mas leve, como perfume de primeira. cheiro de limpeza - cheiro de riqueza.
Cheiro de "lar", mas nunca o da gente.
Salomão olhando pra todo lado, fuçando com o olhar, forçando a vista no escuro ; o Manoel, meio desesperado, procurando, tentando lembrar as instruções,tentando lembrar a merda do mapa da casa. Subindo até o segundo andar , a suíte - não,peraí: é a outra suíte... é, lá esta a porra do vaso, esperando,como na foto, agora ele e o Salomão... Cadê o Salomão?
Lá embaixo: Salomão fuçando,encontrou uma sala enorme com um barzinho. Fuçou as garrafas,olhando os rótulos como se fosse conhecedor, destampava uma ou outra, cheirava o conteúdo, bah!
Ali, num canto: aquilo era diferente. Salomão já vira aquilo antes , nunca pudera experimentar: uma espécie de vaso ou garrafa transparente com contornos engraçados e uma mangueira . O menino sabia como usar aquilo; encontrou um isqueiro pesado no balcão do barzinho, em forma de capeta, acendeu o breguete - a chama saia pela boca do capeta - sentou-se de pernas cruzadas sobre o tapete da sala, pegou a mangueirinha, inalou com força.
Um líquido impreciso começou a se agitar dentro do vaso/garrafa, bolhas formando-se misturando-se fundindo-se sumindo:todas as cores imagináveis,brotando do vazio transparente, sumindo num escuro composto ,pleno.
Salomão se engasgou,tossiu,tossiu,tossiu. Pensou ter ouvido um risinho de zombaria na sala vazia.
A cada tossida brava, cuspia uma nuvenzinha de fumaça acinzentada, densa; cada nuvem flutuava para um só canto da sala, logo além do tapete em que,sentado, salomão se esganava de tosse. Cada baforada juntava-se no todo; cada nuvenzinha ajudava a formar uma figura, tornada cada vez mais sólida e presente: um sujeito gordão, imenso, mesmo, numa roupinha ridícula de carnaval.os braços grossos cruzados sobre a pança desmesurada - o corpo escuro, mas a pele parecia mais algum metal mole, brilhante, com um sem fim de figurinhas filigramas ao invés de pelo manchas rugas...- os olhos miudinhos e brilhantes...esquisitos,mas não menos que o sorrisão arreganhado na cara ampla.
A figura se completou com a última tossida; exausto, os olhos lacrimejantes, Salomão desabou sobre o tapete. Pesado,pesado,pesado.
Saudações, jovem amo. Esse humilde ser existe apenas para serví-lo. Qual o seu desejo?
Desejo? "Desejo"? Desejo de nada.
Queria que todos se fodesem. Que se fodese o Manoel , que se fodesse Abílio o Maneta. Salomão só estava ali porque queria ver. queria saber como era a vida do outro lado, a vida "de verdade". Queria saber de vez se valia aquele esforço todo. Não valia.
Aquilo não era casa,era um museu. Vazio. Não era lugar pra gente, era um lugar pra coisas. Aquela vida. Aquele desperdício todo.
"Eu só quero sumir dessa vidinha..."
E assim será, jovem amo.
Manoel, puto, descendo as escadas, procurando o outro no labirinto da casa, sem encontrar: Salomão era pancada, Salomão era roubada - salomão era o pato certo para o serviço. O trato era que Manoel cortasse a garganta do vigia antes de darem o fora dali,e depois cortasse a garganta de Salomão,depois da entrega. os dois patos ficavam com a culpa e  Manoel, com a paga (Manoel era o pato definitivo, na verdade:nem desconfiava que Abílio o Maneta o recompensaria no ato da entrega, e depois de esfolado o Salomão, com uma bala na testa.)(Abílio,o Intermediário, receberia mucho moneys pelo serviço bem feito...mas,pato bem pago,não receberia nem um quinto da grana do seguro, toda ela pros cofres dos donos da mansão e do vaso, os mandantes do serviço, que ainda esperavam polpuda comissão pela venda da mercadoria no mercado negro de antiguidades.).
Agora,no entanto: o nervosinho Manoel teria que mudar os planos; se o parceiro tivesse dado no pé, teria que convencer o vigia a ajudá-lo com o trambolho do vaso, pra só depois esfolar o infeliz.
É, o outro fedaputa tinha sumido mesmo; chegando a um salão com barzinho, Manoel encontrou apenas o narguilé vazio, a mangueira caída sobre o tapete persa, um rastro de fumaça no ar.
 
***
Salomão despertou assustado no frio gotejante da masmorra. No canto da cela, o velhote barbudo continuava ruminando sua loucura, brincando com suas correntes como se fossem um colar de contas;parecia ali estar desde antes do nascimento de Salomão.
Além das grades, sob a luz fraca das tochas, os guardas roncavam. Noite alta; Salomão não se lembrava mais do sonho que o assutara até o despertar,também não se importava. amanhã, o julgamento do alcaide; só Alá sabia que sentença daria dessa vez, se o roubo de algumas frutas no mercado mereceria apenas o açoite ou o corte das mãos, pés, cabeça, o que fosse.
O menino suspirou; talvez merecesse o castigo não pelo roubo mas por ter-se deixado pegar. Salomão se virava, sempre, sobrevivia um dia por vez. Não adiantava se adiantar, não adiantava se desesperar. Alá era grande... Salomão era pequeno, mas, bem, tinha os pés ligeiros e a cabeça e a língua também; deu de ombros, ajeitou-se em seu leito de pedra fria, dormiu de imediato.

 
("Continua...",sussurra o gênio na escuridão e depois solta uma gargalhada cavernosa)

 
 
(agradecimentos especiais a Erick,Bruno,Letícia e Seixas)

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