domingo, 17 de outubro de 2010

[conto] monstro da semana: zumbis

MONSTRO DA SEMANA: ZUMBIS

Distanciamento clínico.
Objetividade. Seja objetivo. Faça seu trabalho, Alcides; se fizer seu trabalho e todo mundo fizer, cada um, o trabalho que lhe cabe, as coisas se resolvem. Não adianta se afobar, não adianta "se envolver", não adianta sofrer com o que não pode ser resolvido, com o que está fora de suas mãos.
Alcides, mais do que resignado, um resignado consciente: sem fatalismo, sem dar de ombros. Faça seu trabalho, Alcides, e ele fazia seu trabalho, sempre.
E o trabalho não parecia ter fim. "Neste país, médico e político nunca ficam sem emprego",disse uma vez ou outra o colega Vilmar, e Alcides não sabia se aquilo era piada ou não;ninguém que ouvisse o chiste ,ria.
Vilmar quase maníaco depressivo, se comparado com o Alcides constante , reservado - sempre cumprindo sua tarefa (as tarefas, sem fim); Vilmar em seus melhores momentos - mas Alcides já não sabia diferenciar sarcasmo e genuíno entusiasmo, cansado de fazer distinções, fisicamente exausto de tanto trabalho - Vilmar dizendo: "Nós somos os bandeirantes nessa nova fronteira da medicina social, sô.".
Nem Alcides nem Vilmar pareciam resignados, nem seu punhado de colegas irregulares,temporões. Resignada parecia a clientela: adoentada, acamada, prostada, de fato.
A "maldição da mata": quem dizia isso era gente que vinha da cidade, meros visitantes - só observando - classe média. A gente do lugar tinha suas superstições, suas assombrações que nem eram mais só suas: seus mapinguaris, imensos e fedorentos, pés-grande em forma de preguiça gigante; seus botos e iaras nos rios sem fim,e que não cruzavam entre si, mas com a gente ribeirinha, deixando filharada sem dono em seu rastro, ondulações na água escura; os cupelobos, tamanduás assassinos que agarravam a gente desprevenida com sua garras, sugavam os miolos da vítima com a tromba enfiada órbitas oculares adentro...
A mata era um monstro que não podia ser exorcizado, e não havia bença e reza pra vida à beira da mata, à mercê da mata.
Tudo muito recente, muito rápido, talvez não se perpetuasse e apenas se resolvesse com a morte de todos  os infectados; nenhuma, até agora, mas também, nenhuma solução ou explicação razoável. Os afetados caiam de cama da noite para o dia, sem aviso, sem sintomas: inertes, completamente, vivos e saudáveis (até onde permitiam sua condição de vida quase miserável, isto é) mas como que dormindo de olhos abertos. Comatosos insones, alertas, mas inconscientes; não reagiam a qualquer estímulo, apenas os vegetativos, conversavam com a dilatação e retração das pupilas e com os movimentos peristálticos trato digestivo acima e abaixo, a respiração inalterada. os olhos escancarados, ameançando vitrificar-se, se não eram umidecidos de quando em vez, envoltos em gazes e bandagem.
Notável, apenas, um inchaço ao redor das órbitas, algum dano dos músculos, e havia a suspeita de que os pobres diabos não conseguiriam mover os olhos, se quisessem, se ainda pudessem ver, sentir, responder ao mundo. Não havia explicação para o novo mal - não havia jeito de fazer exames mais aprofundados, ninguém que se dispusesse, ainda, a transportar os doentes para um centro médico razoável...a um país de primeiro mundo inteiro de distância, viagem de barco, de helicóptero,rá, sem chance. A hipótese óbvia,entre científica e supersticiosa,era de que o desmatamento recente havia desentocado alguma doença obscura ou desconhecida de sua inércia silvestre. Ou seja, era a maldição da mata ,atacando novamente.
O cupelobo lembrava Alcides de um velho personagem da Marvel Comics; a descrição tradicional fazia-o pensar num homem-inseto, silencioso, mudo, com imensos olhos globulares,sem pálpebras,sem misericórdia,sem noção alguma de humanidade.
(...olhos vazios, imóveis, como os da "clientela"... objetividade, Doutor Alcides: atenha-se aos fatos.)
Como encarnações gigantes do pernilongo, o melhor culpado , o culpado natural, o vetor da maldição, sempre. O pernilongo dos micróbios e vermes era quase como o rato das pulgas e da peste... pior que qualquer assombração chupadora de sangue e morcego-vampiro de praga de mortos-vivos da europa oriental ou o que valha. O pernilongo era o nosferatu nativo, milenar, imortal.
Mas" 'endêmica' é só a má administração desse país de merda",vociferava as vezes o Vilmar. Alcides não sabia o quanto o colega era apenas falastrão, o quanto era idealista; Vilmar era racionalista, era humanista, acreditava em si e na ciência, ou, ao menos, o dizia, fazia profissão de fé.
Alcides? Apenas fazia seu trabalho. Examinava os pacientes,ouvia os parentes desesperancados,concordava,anotava,aconselhava,prescrevia.
O próximo, por favor.
***
Alcides acordando apavorado no meio da noite. Sufocado;respirando com força, tentando.
O ar parado, o calor subterrâneo, o silêncio absoluto:o pânico se acavalando - Alcides segurou a respiração pra não hiperventilar:segurou, esperou, o pulso ferrado do sangue nos ouvidos, olhos fechados forte. não adiantava naquele breu intocável.
Lembrando-se de velhas, terríveis fantasias noturnas: como seria ser enterrado vivo, hein. Como seria:dentro da cova, sozinho pra sempre.Acordado noite adentro.
Alcides sabia :seria exatamente daquele jeito, do jeito que era agora.
Bicho da cidade, desacostumado com o escuro sem luz elétrica, do silêncio sem tráfego das noites no campo , no mato.Alcides custou a se reorientar, custou a se lembrar de quem era, de onde estava.
Situou-se no mundo de vez com uma agitação no escuro, há alguns passos; era Vilmar, com quem Alcides divia o quarto de casebre, pequeno luxo oferecido pelos residentes aos doutores que vinham da cidade grande.Vilmar resmungava, brigava ...choramingava?... tão inquieto no sono quanto na vigília, era como soava.
Os dois médicos tão cansados que nem conseguiam dormir direito. Alcides deveria marcar uma consulta consigo mesmo, isso sim, a primeira coisa na agenda no dia seguinte, avisar a secretária, avisar a secretária, Alcides ruminava voltando para seu sono ruim.
***
E quem estava de cama no dia seguinte era o Vilmar: pegara "a coisa".
Alcides repentindo pra si mesmo o mantra: ele não seguiu os procedimentos,só isso. ele se descuidou; não manteve a distância. ele se deixou envolver, deixou a coisa se aproximar e então, nheco.
Sem pânico. mesmo que outros membros da equipe quisessem debandar...mesmo os residente, uns poucos familiares, e metades dos médicos, apenas, para cuidar dos acamados. deixados à própria sorte, doutores e pacientes.
Vilmar, que passara da primeira classe à segunda duma vez só, uma noite, um fechar e abrir de olhos... a mesmíssima expressão estática.
Sem pânico:apenas siga os procedimentos. apenas... apenas faça seu trabalho direito.
E alcides não conseguia se decidir a fazer ou não a barba do colega.
***
O despertar mais suave dessa vez... quase como se convidado, chamado por um suave sussurro feminino
...no meio da noite e de uma escuridão menos densa, menos absoluta. a confusão menor, também, o horror. estaria mesmo desperto, assim, com esse gosto de anestesia por todo o  corpo?
Porque, logo a sua frente, logo acima: um leve brilho espelhado. Alcides via o próprio rosto, refletido: duas vezes. A cara ensombrencida, a expressão imóvel, impressa em dois espelhos convexos. dois globos imensos, negros, dois olhos inumanos sem iris ou pupilas.
Quase sem rosto, também: incapaz de se mover, de parar de mirar, nem piscar conseguia, Alcides mal enxergava um corpo pequeno e cabeludo, bípede?que se debruçava sobre o médico paralisado...talvez acocorado em seu peito. Alcides não sentia nada,nenhum peso, nenhum medo.
Talvez um pouco. Aquele rosto sem cara aparente: sob os imensos olhos,uma massa de músculos raiada,enrugada... como cú de burro: mas que logo se relaxa, como que inflada, extendendo-se - revirando-se: o falso esfíncter virado do avesso, se extendendo numa longa tromba, a criatura se erguendo, o rosto negro se afastando, deixando espaço para que a tromba dancasse, desenrolando-se no ar à frente da cara do imóvel Alcides... e de tromba passasse a  língua fria e comprida e então a agulha: afunilando-se, afinando-se e então se precipitando direta certeira para o olho esquerdo...através dele...ao redor dele...movendo o olho de lugar com cuidado, tirando-o da órbita-plop. sem dor.sem dano, parece. tudo voltando a seu devido lugar , quando tudo estivesse terminado. E indo além.
E Alcides via analisava precipitava se irritava, isso é tão freudiano... tão pós-freudiano que é quase anti-freudiano ...pior que de de mau-gosto, obsceno.
Isso não é simbolismo sexual em ação, mas é de verdade: estou sendo literalmente fodido na cabeça por um pesadelo vivo.
O que talvez fosse hilário,talvez fosse apenas hediondo. Alcides teria que testar a graça da piada com alguém... Vilmar, talvez... quando tivesse a oportunidade. Nunca.
***
Alcides distante, imparcial: tão objetivo quanto humanamente possível.
Sem muita energia para poder se "envolver" com o resto do mundo, é verdade, apenas enxergando, sem poder sequer mover os olhos, a agitação dos colegas doutores a sua volta. mais atento ao que ocorria dentro de sua própria cabeça, talvez.
A criatura não sugava "miolos"; como dissera o instinto de Alcides, a tromba não era uma boca, era como uma cloaca extênsil. A criatura botava seus ovos no interior da cabeça da gente.
Quem devorava miolos eram suas minúsculas crias.
Alcides podia sentí-las, remexendo-se timidamente lá dentro, lá no fundo... ainda despertando , ainda tentando se acostumar com o espanto do nascimento ...talvez como ele próprio...como quando...?
Não, não, sem deduções precipitadas,nada de brincar de detetive. alcides não tinha realmente como descobrir qual era a origem da criatura, quais as nuances de seus ciclos de vida, quais suas intenções. podia apenas se ater aos fatos. podia aguardar e observar.
Afinal, não havia nada que ele pudesse fazer a respeito. Como sempre.

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