quinta-feira, 14 de outubro de 2010

[conto] somente para seus olhos

SOMENTE PARA SEUS OLHOS

O bando fanfarrão de marinheiros, de folga, no fim da noite, no fim do soldo: já haviam explorado os piores cantos da cidade baixa, já estavam reduzidos aos últimos tostões. bêbados, meio exaustos, meio excitados: parados no meio-fio, na entrada de uma das infames casas de "peephole" da cidade, a placa em neon exibindo o genérico "SSSS":
as lâmpades chiantes, ci-ci-antes, acendendo-se em série,
SSSS
SSSS
SSSS
SSSS
SSSS
, e de novo.
animados, frustrados: assustando, afastando os poucos passantes - querendo entrar mas não podiam, sem chance, sem grana.
Talvez pudessem, um só representando todo o bando . contando os tostões - é o bastante, é a conta. demorando ainda mais pra escolhar o método de escolha - um deles cede a contragosto os últimos palitos de fósforo, quebram um dos palitos no meio, pegam cada um o seu.
Ulisses cata o menor palito, recolhe seu butim entre os urras e tapas nas costas dos companheiros, agradece os cumprimentos como político em camapnha, entra como um rei depois de campanha vitoriosa, com um outro alegre chute no traseiro, assovios e gargalhadas.
Cambaleante, faces quentes, olhos embaçados: a claridade de banheiro lá dentro. apenas uma sala de entrada minúscula, como a recepção de uma cliníca decadente. ao invés de uma secretária entediada, um velhote imóvel atrás de um balcão, nem mesmo uma caixa registradora.
O velhote de óculos escuros: cego?, impassível. Ulisses hesita, solta um leve arroto, aproxima-se-cambaleia-lança os tostões sobre o balcão, grunhe qualquer coisa. o velho recolhe as moedas - sem contá-las - gestos econômicos,mecânicos. Abaixa-se, retoma com um ramo de ervas que deposita no balcão. faz um gesto com a cabeça em direção a um umbral sem porta, apenas cortinas de contas.depois, volta a sua posição de prontidão - cega?-de estátua.
Ulisses resmunga um cado só pra dizer alguma coisa, cata o raminho,atravessa as cortinas - o barulhinho das contas:chuva...mais cicios?- entra no corredor curto, mas escuro.uma única porta, no fim. estranha, olha em volta, dá de ombros, continua, vai até o fundo.
Pensa em bater antes de entrar, ri, entra.
Salinha apertada, igualmente sombria. uma janela de vidro que não se abre, cortinas pesadas, fechadas, além do vidro. Uma poltrona de cinema, velha, fedida. um microfone na parede; uma gavetinha de aço sob o microfone.
Ulisses senta-se, desconfortável, perigosamente perto da sobriedade. abre a gavetinha - dura de ferrugem-deposita o ramo, fecha-a. espera , espera quase nada-ouvi o som leve de estalos,rangidos, zumbidos nas paredes.
Um som mais alto e desagradável, e as cortinas se abrem lenta, mecanicamente.
Além do vidro grosso, uma saleta bem maior que aquela em que Ulisses está enfiado, espantado, agora, olhando arregalado. uma moça de poucas carnes, mas graciosa, num vestido muito leve - mas que pouco,nada revela,nota e resmunga mentalmente esse Ulisses que olha sem ver os detalhes - pés descalços, longos cabelos - castanhos?- sobre o rosto,o rosto abaixado.
A moça está sentada num balanço, o balanço preso ao tetos, os pés, quase um metro acima do chão. o chão é uma grade de metal, circular, base da semi-esfera que é a sala contígua.
Uma luz amarelada sai da grade, ilumina a sala e a menina que parece dormir, quieta em seu poleiro, as mãos no colo.Mas a luz se aviva logo, se avermelha - aumenta, diminui, aumenta, diminui: pulsa. chiado: nuvens brancas sobem da grade, imundam a sala ovalada, mas ah não escondem a visão da menina, não embaçam a janela.
Ulisses estranha, espera - assusta-se com o som forte da inspiração: a moça ergue a cabeça com estalo - na
semi-escuridão:sombrancelhas grossas, longo mas bem proporcionado nariz, longa boca, longos olhos?...- a moça ergue a cabeça e inspira com força
suspira com força e abandono
, sorri, segura as cordas como tranças de seu trapézio ergue os pés cruzados, faz força, começa a balançar lentamente mas com vigor, e ri, ri, ri. Ulisses percebe que o coração bate acelerado, a boca está seca,a pele está toda arrepiada, uma ereção dolorosa de tanta força, apertada dentro das calças.
Os olhos perdidos em seu vai-e-vem, a moça entre risinhos, sonhadora, como se Ulisses não estivesse logo ali.
"Uma pergunta, uma resposta, benzinho. Um pedido, um brinde."
Ulisses gagueja. tenta pigarrear, tenta engolir em seco, parece que acabou a saliva. tenta falar novamente, a língua se enrola novamente na boca.
A garota suspira (suspira muito, e a cada vez que suspira, Ulisses tem vontade de uivar de tanto tesão)
"É a sua primeira vez, não é, amoreco? Tudo bem, mas as horas fazem tique, os minutos fazem taque, o seu tempo acaba logo , meu bem..."
Meu bem. Putz. Ulisses fecha os olhos, respira fundo. uma, duas vezes. abre os olhos, abre a boca.
Ulisses sai da loja lento, cabisbaixo, recebe com um sorriso frouxo os vivas cutucões, tapas dos colegas.
"e aí, animal, como foi?"
Continue em seu caminho e não chegará a lugar algum.
"que foi que ela diz, seu garanhão"
Continue em seu caminho e não chegará a lugar algum
"conta logo essa história, porra!"
Continue em seu caminho e não chegará a lugar algum.
E Ulisses suspirou forte e contou alguma lorota que nem saberia dizer qual foi, depois, e os colegas não acreditaram , de qualquer jeito. Riram, aplaudiram, zombaram, logo esqueceram do caso, esqueceram que estavam sem dinheiro e queriam continuar a farra tonta até o sol rair.
E Ulisses se desculpou, disse que já tinha cumprido a cota, agora era cama e sono. os outros caçoaram e xingaram, Ulisses custou a negociar o ir-embora, inevitavelmente, foi, logo, ele só no meio da calçada e o som da farra dos colegas sumindo noite adentro.
Aonde vai dar essa merda de vida , meu bem?
Ulisses vai embora, para na esquina seguinte, vomita, limpa a boca, continua seu caminho.

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