quinta-feira, 21 de outubro de 2010

[crônica] as pegadas do morto

AS PEGADAS DO MORTO

Psst. Olhe pra baixo, olhe para os seus pés.

Olhe por onde anda, para não pisar em qualquer bosta. Isso eu vi com os olhos no chão - e a cabeça longe, deveria ser, sempre é, afinal - e foi há alguns anos, saindo da estação rodoviária de xxxxxx, cruzando a praça xxxxx.
Gotas de sangue. Borradas, na minha memória, mas pareciam imensas na ocasião. Respingadas praça afora. Essas evidências quase obscenas de um crime recente; a cena do crime não estava isolada , a gente passeava sobre aquilo tudo, em multidões.
Quer dizer, não era nenhum cadáver largado em praça pública, certo?(ceeerto, isso mesmo, pense em todas as vezes em que você - eu- passamos ao lado, sobre, indigentes, bebums, estirados nas calçadas da cidade... qualé, coopera: nosso sentimento de culpa classe-média anda bem embotado ultimamente; você não sente falta de tirar casquinha seca da ferida?)
"Circulando, circulando, não há nada para ver aqui". Sem corpo,não há crime, certo?Sem crime, sem culpa.
As tais gotas borradas - de largas , do tamanho que eram antes de caírem e estourarem no chão - eram espaçadas, tinham rumo definido, direção. Persistiam - persisitiram até algum ponto, depois acabavam, ou perdi o rastro ou o interesse, fui embora, não olhei para trás.
...persistiu o gosto bom de morbidez, né. Aquele lance da masturbação forense, qualé, você sabe do que estou falando. Fato c.s.i.: o corpo humano tem em média cinco litros de sangue (checar,checar); se perde, hmm, quantos litros mesmo?...não parecia muito na ocasião, quando ouvi isso pela primeira vez... não era nem a metade. Enfim, perca alguns litros de sangue, daí você entra em choque. Perca um cado mais e, logo, não há volta, compadre.
Quem pingou ali parecia ter ido e não voltado. Sangrado até o ponto sem retorno. ...tá, deixa eu te dizer o que me deixou encucado nessa "experiência" toda. aquilo não era uma reportagem de jornal, noticiário televisivo, registro de segunda mão, história: era fato,aconteceu, tou pisando em cima. Não vi nada, e não posso negar que aconteceu alguma coisa feia ali. Não sei o que era,sei que houve.
Ora, poderia ter sido um porco, certo? Poderia ser uma lhama que sangrou ali até morrer. Quem sabe. "Isso não quer dizer nada.".
Poderia,deveria ter curado o incômodo com uma obssessãozinha produtiva, certo? Bancado o detetive, devassado os registros policiais da época - aí,então, teria uma história de verdade pra contar, hein, hein, a história que você não encontrou aqui.
Meu "caminho" é o da abstração, sabe; o de quem anda olhando pra baixo, com a cabeça nas nuvens. Ó, ó só como eu iria terminar esse texto, ó:
"ah.[os rastros de sangue formam um diagrama de ] amarelinha espiral. Mini-labirinto de catedral gótica?[trilhas iniciatórias etc.etc. ...ah, cê sabe do que estou falando, certo?enfim,continuando:]
as pegadas acabavam sem chegar a lugar algum.o rastro do defunto que virou fantasma, sumiu da consciência pública:fui eu quem matou o sujeito; fui eu quem o fez desaparecer. " - ah é: e em algum ponto eu ia falar em "mentalidade classicista"vs."mentalidade moderna", entropia e flecha de tempo que não pode ser revertida - e o caminho de tijolos dourados é de via única, não adianta o quanto queira, dorothy não pode voltar pra casa, e blá blá blá
Nada disso. Acho que assim eu acabo de descobrir ou reinventar alguma espécie de falsidade ideológica existencialista, sartreana. Não:
Tanto eu quanto ele, o morto hipotético, a gente só vai numa direção: pra frente. Eu, na sua cola. Não tem outro jeito de fechar essa história, sabe.

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