sexta-feira, 15 de outubro de 2010

[mini-conto] lugares comuns: torre de marfim

LUGARES COMUNS:TORRE DE MARFIM
 
M, o Impoluto, dirigia-se em silêncio majestoso para o lugar de comando, à frente de seu imensurável exército. Caminhava só, sem cortejo,altivo, seus milhares de soldados e escravos, com as cabeças baixas até o pó, a sua volta. Caminhava orgulhoso como o sol no céu nú pelas ruas de seu palácio de verão, que era também seu quartel-general ; aquela cidadela alva, a jóia na coroa do reino, com suas torres inigualáveis de cujas janelas jorrava doce leite em cascatas, e as ruas tão amplas como rios caudolosos: por onde o rei caminhasse, seus súdios se ajoelhavam formando um pavimento vivo, para que Sua Majestade caminhasse sobre suas costas e jamais tocasse o solo impuro.
Ao norte, o Mar de Sal; ao sul, o Mar de Gelo ; a leste, o coração do império, a Floresta Fantasma, o cemitério de elefantes mais vasto que qualquer um desses mares. A oeste, a Pradaria do Pó , o Mar Seco, o imenso silencioso Lago dos Caídos: ali, onde a terra sumira sob os ossos descarnados dos guerreiros mortos em combate - aquela fronteira de ventos assoviantes que enlouqueciam os homens nos longos dias imutáveis, nas noites de lua cheia inclemente. O lugar maldito em que se encontravam a terra augusta de M, O Pálido, e os domínios ímpios de W,O Vil.
...e mais além, o Pântano de Alcatrão, mas , depois? Ninguém poderia dizer, não deste lado do conflito, ao menos. Aquela fronteira assombrada se alargava como um fosso escavado dos dois lados,separava os dois reinos inimigos a eras incontáveis. Do lado extremo do Mar Seco, as ossadas se enegreciam: os guerreiros de M,O Luminoso conheciam as maquínas de guerra do inimigo, as  torres de ébano construídas com a madeira sem fim de vastidões de matas além; torres negras em que se queimava madeira e carne, que sugava a pedra de óleo das profundenzas malditas da tera e a transformavam em fogo e na fumaça grossa carregada de espíritos sombrios e chuva venenosa que  cuspida nos céus , aquela ameaça e insulto sempre visível no horizonte.
...mas, além dessa arquitetura mutante e mortífera, as terras de W,O Negro e de seus ancestrais eram mistério e tabu. Rezava a tradição que o mundo é simétrico, que o reino amaldiçoado refletia, ainda que de forma distorcida, a ordem divina do império de M,O Bom. ...às vezes, os sábios exageravam em suas especulações, sugeriam que essa simetria tinha limites, que o mundo, único,inteiriço, se encurvava para além das terras sombrias de W,O Amaldiçoado... que havia uma outra fronteira entre os reinos, perdida, esquecida, aquém da Floresta Fantasma...Que um reino se transformava no outro, nas míticas, nebulosas Montanhas Cinzas...
Essas idéias eram anátema e não se propagavam pois seus autores tinham as línguas ou as cabeças cortadas. M,O Abençoado, sabia em seu coração,como sabiam todos os seus antecessores, que o mundo não era curvo, arrendondado: era um vasto tabuleiro, que os reis contemplavam por inteiro e comandavam do alto.
Assim, M,O Bravo,O Belo, O Pio - M,O Imortal caminhava seguro e orgulhoso em direção a seu destino. Seu trono coberto por pele de leão das neves, no topo da torre de marfim, equilibrada no lombo de seu elefante predileto: uma escada humana a sua frente, seus súditos empilhados e submissos.
A subida lenta, majestosa, cada gesto destino à eternidade da lembrança. o espetáculo ritual na tarde translúcida, o ar limpo - seco: o elefante se irrita com a secura, o calor, a demora. Bufa, sacode-se : a escada humana treme - Sua Majestade erra um passo, despenca das alturas, de lado, fora do tapete humano. Atinge o chão nu: espatifa-se em milhares de cacos da mais nobre porcelana.

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