segunda-feira, 11 de outubro de 2010

[conto] monstro da semana: coelhinhos de poeira

MONSTRO DA SEMANA: COELHINHOS DE POEIRA

"Despencando através das rachaduras da realidade"...
A Rainha Lindalva , montada em seu fiel ácaro, Mercúrio, contemplava seu reino sem fim e suspirava , satisfeita, completa. Até onde a vista alcançava, para frente, para trás: o desfiladeiro imenso-mundo , um entre inúmeros, as fendas micro-ciclópicas entre os tacos do chão da sala de tevê, esse universo entre a janela e o corredor, esse universo que a Rainha não esgotaria nem mesmo numa vida inteira como guerreira nômade.

Voltavam, amazona e montaria, ao palácio na Cidade de Mofo,depois do passeio rotineiro na alvorada. Enfrentavam uma ventania assustadora e excitante, incessante, Lindalva acalmando Mercúrio, cuidando para que ele se agarrasse bem à superfície irregular enquanto grãos de poeira de tamanhos variados voavam lentamente a seu redor por toda a extensão do vale gigante, como rochas num mundo sem gravidade. Calma, Mercúrio, Calma. 
Uma vida duríssima, aquela - uma vida belíssima.
Mercúrio se acalma quando os dois companheiros finalmente deixam a sombra imensa de uma mosca que flutuava acima do despenhadeiro, ainda que o zumbido de tempestade  de seu bater de asas persistisse, mas extendido, distorcido, ameaça de trovão e não calamidade de troar incessante de motor: tempo e perspectiva
completamente outros ali dentro, lá embaixo.
A Rainha Lindalva deixou escapar outro suspiro,então, esse, mais dolorido. A passagem lenta, vagarosa da mosca lembrava-a de sua adolescência trepidante, quando era então apenas a Princesa Lindalva.
Ela era apenas uma pequena gigante,então, e as rachaduras no chão da sala lhe serviam quanto muito de desconfortável trincheira. Lindalva tinha outra querida companhia naqueles tempos, a mosca varejeira Fafnir - mas era mesmo então, como sempre seria, eterna nômade, os céus da sala eram seu quintal. 
Que vôos e piruetas - que aventuras, as duas companheiras tiveram: dando um fim à guerra entre as formigas e os cupins; salvando o castelo marimbondo dos passarinhos do jardim; derrotando a monstruosa rainha-aranha em seu labirinto de teias...
Aquele fora outro mundo, de fato. parecia imenso, agora; a rainha Lindalva supunha que tudo era maior na adolescência, na infância.
Outro mundo, que chegara a um fim definitivo, a antiga sala de tevê, a casa inteira, esvaziada, remobiliada, limpa - esterilizada. O fim daquele mundo chegara realmente numa noite silenciosa em que a princesa  zumbia calmamente com Fafnir pela casa...estranho silêncio, interrompido por duas explosões...
Depois dos estrondos, a mosca encontrando institivamente o caminho de volta à sala,até o sofá, até os dois corpos que esfriavam. Pousando na testa da mãe de Lindalva; tentado sugar o sangue que já secava ao redor do buraco de bala. Logo além, depois da imensa distância de um ombro, o pai, a cabeça caída para trás, a boca aberta, como em todas aquelas vezes em que ele dormia em frente à tevê ligada e roncava,trovejando. Mas naquele momento,naquela última noite do mundo aéreo: os olhos abertos, fitando o teto, a mão mole caída no colo, envolvendo o revólver.
Já não havia mais televisor naquela sala, é claro.
Suspiro.
Aquele sofá, agora tão distante, fora o refúgio da pequena Lindalva, seu santuário depois da fuga., antes de encontrar Fafnir, antes de ganhar os céus da sala Aqueles não eram bons tempos, os do sofá, Lindalva ainda muito vulnerável, do tamanho de um ratinho, imensa. Passava frio,fome,sempre escondida, fugindo das  enormes baratas... seu pavor de ratos, que só teve fim quando ela adotou aquela pobre,pelada,cega ninhada, orfá de uma mãe quase degolada numa ratoeira. Apenas quatro dos bichinhos sobreviveram , cresceram para se tornar os melhores amigos de Lindalva naquela fase dura,feia da vida - sua gangue!: Huguinho, Furabolo, Aramis e Ringo. 
Ah, as estripulias daqueles tempos, quando a vida era um pique-e-pega, um esconde-esconde sem fim... uma fuga constante dos verdadeiros monstros: os pais da fujona, pequena Lindalva.
A fuga: quando Lindalva era só uma menininha, e enorme, maior que um gato - bem maior! completamente indefesa,naquele tamanho todo: não tinha como se esconder dos pais, e tentava, enfiando-se em qualquer canto,dentro dos armários,debaixo dos móveis... não adiantava. A porta da rua sempre trancada, as janelas com grades: Lindalva enjaulada com os pais.
Até o dia em que os coelhinhos de poeira a encontraram e a adotaram. Lindalva , encolhida num canto da sala,mordendo os lábios,que o choro deixava o pai ainda mais louco de raiva. A sala mais vazia do que nunca: a surra fora bem ruim daquela vez, a primeira em que Lindalva desafiara o pai. Ele havia levado o televisor embora, ia pendurar, ia trocar por dinheiro, por droga. A tevê era a única amiga de Lindalva: não mais, não mais.
Os ecos da porta se fechando com estrondo, os resmungos do pai no corredor, levando o mundo de Lindalva embora; a mãe chapada, desmaiada no quarto. E o coelhinho de poeira veio rolando suave, silencioso, até a menina dolorida,encolhida num canto da sala,seu mundinho claustrofóbico. Fez cosquinhas no tornozelo da garotinha para chamar sua atenção... ela resistiu, anuada, desconfiada,emburrou : ele insistiu, fez mais cosquinhas até as fungadas chorosas virarem risadinhas sonoras.
O coelhinho de poeira brincou cutucou insistiu puxou chamou e por fim convenceu a menininha a seguí-lo, e então ele a guiou através da floresta sombria e pavora da sala de tevê, e além dos cânions cavernosos das almofadas do sofá, para a liberdade.
Lá fora, além do vidro sujo das janelas, monstros gigantescos caminhavam pelas ruas.

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