terça-feira, 12 de outubro de 2010

[mini-conto] círculos viciosos ,tomada 2: mais um amanhecer

CÍRCULOS VICIOSOS, TOMADA 2: MAIS UM AMANHECER
No porão às escuras, atulhado, abafado, fedido: os três, largados a tanto tempo que quase acumulam pó e teias de aranha. Gozando de seu estupor, estendidos sobre os móveis velhos, ou debaixo deles, eles - móveis e o trio - empilhados ali no fundo, longe do caminho, longe da vista alheia.
O despertar inevitável e doloroso: B. percebe que o barato passou de vez , cadê aquele calorzinho de sonho, só a tremedeira agora. Ouve A. chorando baixinho?sempre o primeiro a cair em si. Logo, C., gemendo ao tentar se erguer, praguejando ao tropeçar na escuridão - caindo a seu lado, deixando-se ficar, bufando com a cara contra o chão, levantando poeira. Rindo?
B. o procura com as mãos, às cegas, encontra os cabelos secos, desce pelos ombros até os braços, a camisa sem mangas . B. perdeu sua mangueirinha de borracha; sem pedir licença, procura, acha, abre, puxa com brusquidão o cinto das calças de C. Este não reclama , não faz nada, continua com a cara no chão, respirando com força, mas em ritmo constante, dormindo?, impossível:esperando.
B.amarra o cinto no braço de C., procura uma veia entre as cicatrizes. Encontra, bate de leve na pele fria e úmida... e então sente o pânico subindo do estômago pra boca, de uma vez, como uma golfada de bile. não está com uma seringa a mão, não sabe onde encontrá-las, terá que rastejar pelo porão às escuras a procura...
Um ligeiro cutucão em seu braço, um susto... extendendo uma mão que treme, hesita: encontra a mão de C. que lhe estende uma seringa. A agulha na veia perdida entre cicatrizes - B.prende a respiração: de dor ou de prazer?-puxando o êmbolo, enchendo,enchendo.
A seringa cheia, B. tira o cinto do braço de C., amarra no seu próprio, recosta-se num sofá meio comido de bichos, procura com cuidado uma veia vaga, acha, enfia a agulha, aperta o êmbolo.
O gozo lento, prolongado, até quando?:a seringa solta, dependurada pela agulha no braço quase esquelético. B.sentindo um toque em seu pé descalço, é A que procura veiazinhas entre seus dedinhos. Tudo bem, tudo bem; quando tiver forças, C. alcançará A. e então o circuito se fechará. ao menos daquela vez.
Pois haverá outras. Ainda que, em algum momento, algum dos três tenha que abandonar o escuro alívio do porão, mirrados, sacos quase vazios de um sangue ralo que não se renova mais com a velocidade necessária. Mas não agora,não agora. Outro dia, outro dia...

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